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Para elevar o astral

As inovações tomam forma no mundo, e continuamos presos ao passado, falando de déficit e corrupção

Enquanto no mundo muitos aproveitam a passagem do ano para pensar sobre as grandes transformações a caminho na nova década, do fim do cartão de crédito de plástico e da ascensão do veículo elétrico ao ubíquo smartphone como aparelho de checkup em tempo real, o assunto mais palpitante no Brasil, no ocaso de 2019, é a figura do juiz de garantia, que ainda vai render muita discussão em 2020. Para variar, estamos por fora. Nos anos 1980, a reserva de mercado da informática nos sacou de três grandes transições: a eletrônica, a computação e a internet, já considerada a maior transformação em todos os campos da atividade econômica e social desde a 2ª Guerra. Nos anos seguintes, de hiperinflação e insolvência externa, não se cuidou da reforma da gestão do setor público, que já tendia para os interesses da elite da burocracia e de grupos econômicos atrasados, nem da infraestrutura necessária para manter a competitividade da indústria. E isso quando ela ainda era maior e mais sofisticada que a produção nascente da Coréia do Sul e, sobretudo, da China. Em 2010, o governo Lula fez de tudo para mudar de concessões para partilha o regime de exploração do pré-sal, reforçando o monopólio da Petrobras, no mesmo momento em que o mundo se dava conta de que os EUA voltavam a ser um grande produtor graças à exploração de gás de shale (xisto). Pressionada, a direção da estatal contratou uma firma de consultoria de Dallas para relatar o tamanho desse evento. A leitura indicava que a exploração do pré-sal tinha de acelerar. Isso exigia capitais e petroleiras privadas. O governo Dilma fez o contrário: endividou a Petrobras como operadora exclusiva e apoiou a produção local de plataformas. Ignorou também duas outras grandes tendências: o ambientalismo e o carro elétrico. É o que explica o fiasco do primeiro leilão do pré-sal, em novembro. Petróleo entrou no index de indústrias malditas, a caminho da obsolescência. Assim rodam as revoluções tecnológicas: começam sem visibilidade, demoram a acontecer, os pioneiros costumam quebrar, até que um dia despontam de maneira abrupta. Foi assim com a indústria da música, o televisor de válvula, a TV aberta, o telefone fixo, a máquina fotográfica, o GPS, tudo enfiado no smartphone. E nós com isso? Nada. Discutimos juiz de garantia, Lula, Moro, Bolsonaro. Arre! Besteirol só para lacrar Os “trending topics” das redes sociais que prendem as atenções e agitam bate-bocas falam de um mundo que se foi, como o trovão ecoa o raio que já caiu. O fenômeno das fake news, por exemplo, mobiliza até uma CPI, enquanto na Europa, EUA, no Oriente Médio, na Índia já se evoluiu da fenomenologia do problema para a fase de ação. Na Rússia e China, a internet tem acesso ou restrito ou vedado ao exterior. Na Índia, o governo tirou a internet do ar, na semana passada, para dificultar os protestos da minoria muçulmana contra uma nova lei que favorece a maioria hindu. Nos EUA e na Europa, a urgência é a ameaça à democracia liberal por radicais que propagam mensagens de ódio nas redes sociais – tal como os algoritmos enviesados para atrair tráfego e cliques nas plataformas digitais. O acesso à informação confiável e de qualidade é outra tendência em movimento, tanto por regulação governamental como por startups que buscam barrar usuários indesejáveis e riscos de hackeamento. Nossas charretes digitais O fato é que estamos num processo de mudanças maiores que a nossa capacidade de processá-las, gerando anomalias, como a certificação digital de empresas renovável a cada ano (para dar sobrevida aos cartórios). Ou prova de vida presencial requerida pelo INSS. Não é para isso que servem os programas digitais. Equivaleria, no início do século passado, a carros a motor atrelados a cavalos. Um absurdo, tanto quanto combater a corrupção “com leis e políticas públicas mais robustas”, segundo Deltan Dallagnol, procurador da Lava Jato, que vai para seu sétimo ano sem conseguir exterminá-la, e não por falta de vontade. É por falta de mudanças de processos de gestão e de automação da receita e despesa dos dinheiros sociais. Já é possível processar a arrecadação tributária em tempo real, extinguindo o regime em que o contribuinte declara o que deve em vez de ser informado a posteriori sobre o que lhe foi recolhido. Faça-se tal mudança que a corrupção encolhe, tanto quanto o poder discricionário e sem voto das instâncias de controle. Fim do saber escolástico A implantação de inteligência digital e tudo o que lhe acompanha no setor público é a oportunidade para o Legislativo e o Executivo recuperarem o protagonismo disputado pelas corporações não eleitas e conduzir a retomada do desenvolvimento por meio da transformação tecnológica. A um só tempo se enobrece a representação eleita e se abre ao capital privado o acesso ao que gera valor na economia. Não é mais a indústria convencional, mas a do conhecimento. É ela que desafia o setor bancário e outros negócios tradicionais. Até o mercado de proteína animal, estimado em US$ 1,8 trilhão no mundo, começa a ser acossado por startups que produzem carne a partir de plantas, como o Impossible Whopper, à venda na rede Burger King. As mudanças em processo surgem encadeadas, como o carro elétrico, que põe em risco a estrutura de postos de serviços, fabricantes de autopeças e a cadeia de óleo e gás, e trazem implicações culturais incapazes de serem resolvidas pelo saber escolástico. Vem dai as crises que afligem as democracias liberais. Não estamos imunes a tais vieses, agravados pela obsessão dos tecnocratas e sua expressão na ortodoxia acadêmica com problemas do século passado. De onde virá a redenção Adaptando mensagem do prestigiado economista Daron Acemoglu, do MIT,precisamos de políticas que moldem o rumo do desenvolvimento tecnológico e promovam programas que deem autonomia aos pobres. Famílias com renda total de até R$ 5 mil ao mês são mais de 75% da população, ou 84% no Norte e Nordeste. Esse é um ativo tratado como passivo, mas que, visto com outros olhos, será a redenção do país imaginado 40 anos atrás por grandes investidores como a terceira ou quarta maior economia do mundo neste fim de década. Somos a 9ª economia. Essa é nossa prioridade, não a dos falsos heróis que hiponotizam as atenções e semeiam divisões.


Por Antonio Machado, jornalista, colunista dos jornais Correio Braziliense e Estado de Minas, editor do Cidade Biz

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